Desde que comecei a trabalhar com crianças, não ainda como psicopedagoga, mas como tutora de aprendizado, percebi nitidamente que os sintomas infantis não poderiam ser suplantados sem que os pais se dispusessem a se olhar e superar determinados comportamentos, principalmente, os relacionados à negligência e a abuso.
Já como psicopedagoga, deparei-me com extensa literatura científica que comprovava meu sentimento, calcado empírica e intuitivamente, de que as crianças expressam em sintomas o comportamento dos pais.
Rubem Alves (2011) disse que:
“os olhos têm um poder mágico. Um olhar pode tranquilizar ou amedrontar, mesmo que a boca não diga nada. A tranquilidade excita a inteligência. O medo paralisa. Uma criança amedrontada não pode aprender.”
Como já dito, conforme a teoria polivagal, um estado de segurança é detectado pela conexão entre face e coração que fornece a nós e outros mamíferos sinais por meio de expressões faciais e vocalizações. Dentro desse modelo, a maneira como olhamos, ouvimos e vocalizamos transmite informações sobre se é seguro estar na nossa companhia. (PORGES, 2017)
Recentemente, ao questionar, numa sessão Q&A do curso sobre trauma de choque e de desenvolvimento, o que poderia fazer para ajudar crianças e jovens que vivem em ambientes ameaçadores e famílias violentas, pude ouvir de Peter Levine que o melhor a ser feito era trabalhar conjuntamente com os pais ou cuidadores.
Nem sempre é possível trabalhar com os pais, então, nesse sentido, o melhor que se pode oferecer tanto às crianças, quanto a adultos que sofreram experiências adversas na infância, é, primeiramente, um vínculo seguro.
Muitas crianças apresentam melhoras significativas em relação às queixas de aprendizado simplesmente quando se sentem seguras na presença do cuidado e vínculo seguro.
Eis a transcrição de um áudio de uma pequena após sua primeira sessão:
Eis a transcrição de um áudio de uma pequena após sua primeira sessão:
“Eu esperei tanto por esse momento da terapia, não vejo a hora de chegar a semana que vem para a gente se falar de novo. Para mim você é uma professora, então vou mandar feliz dia das professoras pra você. Você é uma professora muito interessante, a professora que mais gostei.”
Nesse sentido, a teoria polivagal enfatiza um modelo em que a segurança é definida pela sensação de estar seguro, não pela eliminação da ameaça. Sentir-se seguro depende de três condições: o sistema nervoso autônomo não pode estar em estado de alerta à defesa; o sistema de conexão social deve ser ativado para inibir a ativação simpática e conter funcionalmente o sistema nervoso simpático, mantendo o circuito vagal dorsal dentro de uma faixa ideal (homeostase) que favoreça a saúde, o crescimento e a recuperação; e detecção de sinais de segurança (vocalizações, expressões faciais e gestos positivos) por meio da neurocepção. (PORGES, 2017)
Mais especificamente, como o próprio Porges afirma, a segurança é o tratamento. Para os tratamentos serem eficazes, o sistema nervoso autônomo não pode estar em estados defensivos. Devido à ativação do sistema de conexão social com suas vias vagais ventrais, o sistema nervoso autônomo pode contribuir para a saúde, o crescimento e a recuperação. Contudo, o que se pode observar na nossa sociedade é que este princípio de "sentir-se seguro" como um precursor do tratamento não está bem integrado aos modelos tradicionais familiar, educacional e médico. (PORGES, 2017)
Como disse anteriormente, Van der Kolk nos alerta para o custo alto de se viver num estado inseguro. O estresse traumático e a sucessiva reexperimentação de seus padrões é uma das maiores causas de violência na sociedade.
Outrossim, ao passo que cientificamente somos cada vez mais conscientes do funcionamento do cérebro e da fisiologia do trauma, aptos não só a tratá-lo, mas também a preveni-lo, socialmente, vivemos um retrocesso com políticas opostas à universalização de serviços médicos e às condições mínimas para uma vida saudável, que incentivam a violência com o uso de armas e que toleram o encarceramento da população mais suscetível. (VAN DER KOLK, 2020)
Nesse mesmo sentido, Peter Levine assevera que uma mudança sistêmica nas instituições da nossa sociedade seria um grande passo na prevenção e no tratamento do trauma. (LEVINE e KLINE, 2016)
Cabe, portanto, lembrar que um dos desafios enfrentados no tratamento de crianças e adultos que enfrentaram experiências adversas na infância é justamente o diagnóstico. No DSM-5, atual manual de diagnóstico e estatístico de transtorno mental, não é considerado o transtorno de trauma de desenvolvimento como resultante das experiências adversas na infância, embora tenha havido um esforço hercúleo por parte de médicos que encabeçaram estudos nesse sentido, dentre eles Bessel Van der Kolk.
Van der Kolk alerta que, conforme dados do National Child Traumatic Stress Network - NCTSN, 82% das crianças atendidas não atendem o critério de TEPT e acabam por receberem diagnósticos pseudocientíficos, como transtorno desafiador de oposição ou transtorno contestador de desregulação de humor, o que além de impedir o tratamento adequado, agrava o quadro de estresse traumático. (VAN DER KOLK, 2020)
Levine, da mesma forma, alerta para o fato de crianças traumatizadas precocemente, principalmente, no pós-parto, por afastamento da mãe e por procedimentos médicos, serem diagnosticadas com autismo quando na verdade sofrem de transtorno de trauma de desenvolvimento. (LEVINE e KLINE, 2016)
Contudo, na prática dos atendimentos, ainda que virtuais e em contexto pandêmico, é possível trazer recursos simples, contribuindo para que o trauma diante de experiências adversas não seja mais um obstáculo na vida de crianças e adolescentes.
Uma estratégia simples que tenho utilizado, adaptada do livro “El trauma visto por los ninos”, é a mentalização do ser árvore. Numa linguagem compatível com faixa etária, de preferência usando rimas, conduzimos os pequenos para sentir a conexão com a terra, imaginando as raízes, e com o ar, imaginando os galhos. É uma prática bem simples e com bons resultados. Geralmente, as crianças relatam sentirem mais tranquilidade, regulação da respiração e dos batimentos cardíacos e sensação de potência. (LEVINE e KLINE, 2016)
Peter também sugere a utilização de brincadeiras para a criação de narrativas coerentes aos pequenos, no intuito de superar situações de luto, separação e abuso, podendo integrar suas experiências. Na minha prática, tenho utilizado o origami como uma poderosa ferramenta.
Ao passo que as crianças se conectam com as dobraduras e são estimuladas a falar sobre suas sensações, um caminho de compreensão, sobre o que acontece interna e externamente, vai sendo trilhado. O êxito na execução da dobradura transmite a informação de potência e superação. Após aprenderem a fazer na sessão, muitas crianças relatam reproduzir as dobraduras sozinhas nos momentos mais desafiadores para se sentirem recursadas.
Inspirada também em um dos exercícios suscitados por Peter, convido as crianças a desenharem duas personagens que a representem e pintem em uma delas as sensações e emoções desagradáveis e na outra as agradáveis. (LEVINE e KLINE, 2016)
Muito curioso perceber que, contabilizando meus registros, em 90% das vezes, as sensações e emoções sejam elas agradáveis ou desagradáveis são percebidas na mesma região do corpo. Isso dá uma excelente oportunidade para explicar para elas a ideia de vórtice e contra-vórtice, o que elas assimilam muito facilmente e relatam, posteriormente, momentos em que foram capazes de perceber sozinhas a transmutação do desafio em potência.
Como citei, orientada por Peter, tenho trabalhado concomitantemente os pais no sentido de que possam também acessar seus próprios recursos e perscrutarem suas próprias sensações, autorregulando-se para estarem com seus filhos da melhor maneira que é possível. Estando regulados, podem mais facilmente se conectarem com as necessidades de seus filhos, contribuindo, assim, para a regulação deles. Essa sem dúvida é a condição mais desafiadora.
Importante lembrar que à luz da teoria polivagal, somos mamíferos, vivemos em bando e o bando deve nos prover de segurança. Seja o bando a família, a comunidade, a sociedade, o mundo, devemos pensar, individualmente, como resgatar nossa essência vital.
Estamos diante de uma crise mundial, todos os pilares da sociedade capitalista estão ruindo. Até aqui temos sobrevivido geração após geração, o que faremos para continuar sendo sobreviventes? Como acessar a sabedoria de milhões e milhões de anos preservada em nossos corpos? Busquemos nosso bando, protejamo-nos, criemos a segurança necessária para nos manter no mundo.
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